Crônicas Testosterônicas - "Eu sei onde estamos!"

Um Astra cruzava com velocidade uma larga e mal iluminada avenida de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. No banco do passageiro uma bela mulher se maquiava, pintando o contorno de seus belos olhos azuis através do espelho do carro. O motorista – um homem de porte atlético, cabelos negros e olhos castanhos – vinha dirigindo com uma mão no volante e outra no câmbio, em seu semblante uma expressão fechada.

O carro aproximava-se de um cruzamento. A mulher, sua namorada, sem interromper sua maquiagem, comentou:

- Se virarmos... Er... Se virássemos a direita naquele cruzamento...

- Volte a se maquiar, Gabi. – Interrompeu rudemente Edu.

- Mas aquele é o caminho para o cinema...

- Eu sei o caminho para o cinema!

- Ai, ta bom... Vamos ver então...

- Hunf!

Edu, macho de respeito que era, jamais admitiria estar errado sobre o caminho para o cinema. Afinal, aquele caminho era...

- Um atalho!

- Ah sei... – disse Gabi, algum tempo depois de ter certeza de que estavam perdidos – E por que este atalho é mais longe?

- Oras, quem disse q é mais longe?

- Ué Edu! Desde a hora que saímos em casa já deu tempo de chegar três vezes ao cinema! Que raio de atalho é esse?

- Um atalho meu, diabo! Pode parecer que demora mais, mas é muito mais curto!

-...

- Que foi, Gabi? Que cara é essa?

- Você está enrolando! Um atalho que demora mais, mas é mais curto? Onde já se viu?

- Aqui ué... Você ta vendo!

- Admita que nós estamos perdidos, Edu!

- Não estamos! Que coisa chata! Eu sei onde estamos!

Gabi olhou pela janela. Ruas que nunca vira antes, mal iluminadas e desertas. Construções velhas e abandonadas, muros pichados e latas de lixo viradas e mexidas por animais de rua. Definitivamente, não estavam mais no centro.

- Ram! – resmungou ela – E onde estamos, Sr. Edu?

- Oras! Onde devíamos estar!

- Grrr! Você me irrita!

Edu apenas a olhou de soslaio, indiferente à reação da moça que, brava, cruzou os braços. Passados alguns minutos Gabi pulou do banco apontando pela janela.

- Ali! Já passamos por esta praça antes! Tenho certeza!

- Dejà vu!

- Como assim?

- Oras, Dejà vu... Você acha que já viu aquela praça, mas é só impressão sua!

- Pela terceira vez?

- Ué... que que tem? Acontece ué!

- Grrr! Edu!

- Ah! Sossega Gabi! Já estamos chegando!

Bufando de raiva a moça volta a se ocupar com sua maquiagem, indignada com a teimosia do namorado.

Aos poucos a paisagem do subúrbio ia ficando mais feia. Alguns mendigos aglomeravam-se nas ruas em torno de latões com fogo.

- Ai Edu... Tem um monte de gente estranha lá fora! – disse amedrontada Gabi.

- Oras! Você é muito preconceituosa!

- Eeeu?

- É! São mendigos! Gente passando necessidade, sabia?

- Credo... Eu sei, mas por quê esse sermão agora?

- Para você ver como sua vida é boa! Por isso vim por esse caminho, para te mostrar como a vida é! Para não reclamar da sua vida e...

- ...

- E não adianta fazer essa cara de brava!

- Brava não! Eu to puta com você, Edu! Aaaaaah! – Gabi agarrou irritada seus próprios cabelos – Admita logo que você se perdeu!

- Não! Não estamos perdidos!

- Ah! Uma loja de conveniências! – Gabi se entusiasma apontando pela janela – Vamos parar e perguntar o caminho!

Edu fita sua namorada com uma expressão indignada no rosto. Então pisa fundo no acelerador, roncando o motor do carro, deixando a conveniência para trás e firmando seu posto de macho de respeito.

- Isso é uma afronta! – grita Edu, totalmente indignado.

- O quê?

- Perguntar o caminho, oras! Eu nunca pergunto o caminho! Chego no inferno mas não paro para perguntar!

- Mas você não sabe onde estamos!

- Sei sim! No caminho para o cinema!

- Aff! – resmungou Gabi.

Ela abaixou o espelho do carro e apanhou o batom em sua bolsa. Enquanto passava em sua boca, resmungou em voz baixa.

- Não vamos chegar nunca ao cinema...

- Ah é?! – Indagou Edu revoltado.

Bruscamente o namorado, em um rompante de testosterona, virou o volante todo para a esquerda e puxou bruscamente o freio de mão. O carro rodou no meio da larga pista da avenida com os pneus travados e chiando. Gabi foi jogada contra a porta e se segurou onde pôde, abandonando o batom que lhe riscara o rosto pela bochecha até quase na orelha. No asfalto ficaram as marcas pretas de pneus e no ar uma densa fumaça de borracha queimada.

- Ah, não vamos chegar nunca?! – gritou Edu.

O indignado namorado engatou a primeira, pisou fundo no acelerador e continuou:

- Pois então nós vamos é para casa!!! – e então soltou o freio de mão.

O carro arrancou e saiu cantando pneus pela avenida, correndo agora em sentido oposto.

- Mas Edu...!

- E nada de “mas” !!!!

Edu seguiu com o semblante irado. Gabi de braços cruzados e revoltada. Os dois seguiram em silêncio o resto da viagem. Provavelmente ele até não soubesse tão precisamente o caminho que tomou, mas jamais admitiria isso. Não podia. Era proibido, era contra as regras do mundo masculino. Afinal, um macho de respeito que se preze jamais assume que não sabe o caminho. Pode ter que voltar para casa, morrendo de vontade de ver o filme, mas não assume!

0 observações peculiares:

 
©2009 Insana Consciência | by TNB