Retorno de Saturno

Era uma vez um guri. Como outros tantos, queria ser piloto de fórmula um. Adorava ver as corridas, brincava com carrinhos e corria pela casa com um capacete de moto, fingindo ser o Ayrton Senna. Até que um dia o Ayrton Senna morreu. E o guri passou a considerar essa uma profissão bem arriscada. E achou melhor mudar de idéia.
Depois já quis ser piloto de avião, astronauta, policial... Mas acabou crescendo e precisando pensar em uma profissão de verdade. Afinal, em acidentes de avião não sobra um vivo. Nem o piloto! Astronauta? Pffff...! E policial? Ah, depois ele cresceu mais e viu que nem queria tanto assim...

Havia decidido ser professor! Gostava de estudar, vivia no pé dos professores perguntando sobre o que não havia sido dito na sala. Trocava qualquer prova para apresentar um trabalho lá na frente, para toda sala! Isso! Seria professor! Sem riscos, sem perigos e fazendo o que gostava.
Até que o guri cresceu mais um pouco e passou a ser também um vestibulando. Era hora de fazer uma escolha.

A esta altura já aprendera a seguir os conselhos dos pais. Afinal eles viveram mais, sabem das coisas. E nós não precisamos cometer os erros que eles cometeram. De tanto escutar estes conselhos, acabou achando que ser professor não era uma boa idéia. Ganhava pouco, trabalhava muito. Não dava futuro. Afinal não adianta seguir uma paixão que não dá futuro, não é mesmo?
Quem sabe... vejamos... Tem tantas opções na ficha de inscrição... Direito. É uma boa. Dá para fazer bons concursos. Afinal seus pais eram funcionários públicos, viviam bem, eram felizes. Ele também poderia ser. Um bom cargo em uma secretaria qualquer, com bom salário e segurança. Afinal ninguém pode despedir você, mesmo! É isso aí! Seria funcionário público.
Não era seu sonho de criança, nem sua grande paixão... Mas arrumaria tempo para bons hobbies!

Ah, agora era universitário! Orgulho do papai! E quando passou em um concurso no terceiro ano da faculdade? Nossa, os pais ficaram inchados de orgulho! Até carro ele ganhou. Agora trabalhava de dia, estudava a noite. Já começava a ter seu próprio dinheiro. Tinha carro. Já era assistente de alguma coisa em uma secretaria qualquer. Fazia uma moral com as meninas. Dava uns beijos aqui... Outros ali... Era um gurizão bonito. Não ficava sozinho.

Até o dia que conheceu uma guria. Não uma qualquer. Mas a que ele realmente desejou. Quem ele realmente quis. Aquela guria era diferente das demais. Seu beijo, sua conversa, o sexo, o carinho... Não achava nada igual nas outras gurias. Aliás, elas ficaram tão sem graças depois disso! Ah... ele estava apaixonado!

Mas sabe como a vida é, né... Aconteceu alguma coisa ruim com eles. Acho que ele fez alguma coisa que não devia, daí ela agiu de um jeito que não queria, e ele acabou falando o não podia. Alguma coisa assim. E eles acabaram se afastando.

Mas ele continuou apaixonado. E ela também por ele. Mas não se falaram. Sentindo-se tão maduros sentimentalmente quanto jamais seriam, decidiram que seria melhor assim. Ambos de coração partido se afastaram. Ainda sentindo falta um do outro.
Bem que o guri tentou algumas vezes se reaproximar. Mas ela não demonstrava, naturalmente, clara e escancaradamente o que sentia. Ela estava magoada, e também fazia dos seus joguinhos. Mas ele desistiu rápido. E foi procurar nas outras o que havia nela.

Claro que não encontrou. Nenhum beijo, nenhuma conversa, nenhum sexo e nenhum carinho eram iguais. Alguns beijos bons com conversas fúteis e irritantes. Alguns sexos intensos sem um pingo de carinho. E cada vez que se frustrava em encontrar em outras meninas o que tinha naquela guria, se sentia mal. Foi então que parou de procurar.

Mas sabe como a vida é né... Como era de se esperar, apareceu outra guria. Essa era bem bonita. Beijava até que bem. E até que conversava legal. Com ela até que rolava um sexo gostoso. E até que era bem carinhosa. Até que era uma boa pessoa para se estar junto. Mas ainda não era como com aquela guria. Afinal era outra, né... Mas ele se encheu de esperanças de que um dia seria com a outra tão bom quanto era com aquela.

A esta altura já estava formado. Estudava com afinco para passar no concurso de fiscal não sei de quê em uma secretaria qualquer. Era um ótimo salário, com bons adicionais.
Assim foi. Seguindo o conselho de seus pais, sobre ser um funcionário público, passou no concurso e assumiu. Seguindo o conselho sobre ser melhor estar com alguém que gosta mais de você do que você da pessoa, se casou com a outra guria. E com o passar dos anos acabou se esquecendo daquela guria. Aliás, esquecendo não. Apenas não se lembrou mais.

Os anos passaram.
Um dia, quando o guri já entrava nos seus trinta anos, lá pelas três e pouco da tarde de uma quarta-feira, deixou-se cair tediosamente na sua poltrona. Seus olhos se perderam em um ponto qualquer na parede branca de sua sala. E ali, em frente a um monte de papéis de processo jurídicos odiosos, olhou em torno de sua própria vida.

Estava bem casado, com uma mulher que o amava. Tinha um filho que amava. Uma bela casa, de fazer inveja em muita gente. Viajava duas vezes por ano, trocava de carro uma. Tinha um trabalho importante. Diabos, por que esta inquietude?!

Foi quando se deu conta de que não tinha paixão pela sua mulher. Nem pela casa, nem pelas viagens e nem pelos carros. Muito menos por aquele emprego! Todos os dias em que chegava ao escritório já pensava na hora de ir embora. Odiava as três horas, porque era a que mais demorava a passar. Odiava-se por não estar lecionando. Ou correndo de fórmula um, ou pilotando aviões, ou em foguetes ou indo atrás de bandidos.

Odiava não ter paixão em absolutamente nada em sua vida.
Odiava ainda mais ter encontrado aquela foto que estava em seu monitor.
Odiava a casualidade que o fez encontrar aquela foto na internet.
Na foto aquela guria abraçada com um homem. E ambos com anéis dourados nos anulares esquerdos.
Aquela guria que ele amou, aquela por quem sentia paixão. Casada, claro. Por que não casaria? Bonita e inteligente. Não deve ter sido difícil encontrar um homem que gostasse mais dela do que ela gostava dele.

Estava ali, sorrindo na foto. Um sorriso parecido com o que ele próprio sorria quando estava com sua esposa. Um sorriso incompleto. Completamente diferente de quando sorriram naquela outra foto em que estavam juntos.

Talvez ela também estivesse se sentindo incompleta neste momento. Talvez também sentisse que quem o completava não lutou. Talvez, ainda, também achasse que ela devesse ter facilitado um pouco as coisas.

Foi então que ele quis desesperadamente voltar no tempo. Quis fazer tudo diferente. Quis ter feito outras escolhas. Quis ter escolhido suas paixões. Quis ter aceitado os riscos.

Mas apenas quis. Por que quando se deu conta já eram seis horas e tinha que voltar para casa.



Crônicas Testosterônicas - Telefonema



-Alô?

- Oi amor!
- Ah, Gabi! Tudo bom, linda?
- Tudo Edu, e você lindinho?
- Também...
- Ai! Que raiva daquele professor! Acredita que eu vou ter que fazer exame por causa de três décimos?
-Hã...
-E uma matéria chata do caramba! Ele não fala nada com nada!
- Hmm..
- Eu não entendo nada que ele diz!
-...
- E ainda tem um monte de trabalho para entregar essa semana!
- ...
- Edu! Você ta aí?
- Ué. Tô!
- Ah! Fica aí só resmungando “ah, hmm, hã...”.
- Mas é que...
- Onde você está?
- Em casa...
- Ai Edu! Mentira! Você ta com alguém né?
- Gabi... você não ligou no fixo?
- É mesmo...
- Que coisa!
- Ah, mas você está estranho no telefone...
- Ah... Eu não gosto muito de telefone.
- Você não gosta de falar comigo?
- Não, linda... mas é que o telefone... sei lá... prefiro falar ao vivo.
- Hunf.
-...
-...
- Que foi?
- Que foi o quê?!
- Ué, você ficou quieta de repente!
- *suspiro*
- Que que foi?
- Nada, Edu! Nada! Não foi nada, ta?!!
- Ah ta... Vô ali tomar um banho, ta?
- Ah, vai me deixar aqui assim?
- Assim como, mulher?! Eu acabei de perguntar se aconteceu alguma coisa! Você disse que não foi nada!
- Ai, vocês homens são todos iguais!
- Ah, então por que vocês escolhem tanto?
- Insensível!
- Mas...
*tu....tu....tu...*
*telefone toca*
- Alô!!
- Não acredito que você desligou na minha cara, Gabi!
- Você tava merecendo, grosso!
- E posso saber por que sou grosso?
- Ah! E ainda pergunta! Será que não vê que é por que...
*tu... tu...tu...*
*telefone toca*
- Alô!
- Edu, seu ignorante! Você desligou na minha cara!!
- Ah, viu como é bom?
- Grrrr... seu grosso!
- Doida!
-...
-...
*suspiros*
- Ta bom, vai... desculpa, Du... Eu to meio estressada...
- Ah, desculpa eu, mor... Às vezes sou meio ogro assim mesmo. Mas sabe que eu não sou chegado nesse lance de muito telefone.
- É eu sei... vou tentar me controlar.
- Eu também vou tentar não ser tão grosso.
- Ahh... que lindo. Você não é grosso!
- Ah, você também não é doida!
- Ah... te amo lindinho!
- Ah... eu também!
*oooun*
- Ta bom lindo, eu vou deixar você tomar seu banho, ta?
- Então ta. Vou passar aí depois pra gente ir fazer um lanche. Aí você me conta o que rolou na facul, pode ser?
- Então, ta! Combinado!
- Então beijo, linda!
- Beijo...
- er... tchau...
- Ahh... desliga você primeiro vai...
- Ta. Tchau. Beijo.
*tu...tu...tu...*
*telefone toca*
- Alô?
- Seu grosso!!!!!
*tu...tu...tu...*
- Mas que diabo! Calma... que dia é hoje mesmo? Hmmm... dia de tpm. Normal... Hum... onde será que a empregada guardou as toalhas limpas?

Mesa de cabeceira.

Eu sou um cara materialista.

Não materialista no sentido comum, de um cara que só dá valor às coisas materiais, às marcas e grifes. Aliás, esse tipo de materialista eu não sou mesmo...
É aquele materialismo em que você é apegado às coisas que te trazem lembranças, que estiveram com você em algumas situações. Sei lá... coisas que você tem na mesa de cabeceira. Um porta-retrato, um incensário, algum enfeite. Tem as coisas menos comuns, como conchinhas de praia, abajur, camisetas, pingentes, cartões, livros e por aí vai...

Dar valor a estas coisas, e guardá-las com carinho carregando-as de lembrança e valor, é ser materialista. Ser apegado ao mundo material. E isso eu sou mesmo! E muito apegado ao mundo material. Afinal estou seriamente desconfiado que é só este mundo que existe.

Mas sobre existir outro mundo ou não, isso é outra história. Estou falando daqui, das coisas que te lembram do que você passou. Eu, por exemplo, sempre guardo tudo quanto é tranqueira que ganho. Tranqueiras carinhosamente falando, é claro!

As coisas que você mais gosta, que te fazem lembrar os melhores momentos, geralmente ficam em um lugar que você vê com frequência. Eu as deixo na minha mesa de cabeceira. Como não cabem todas, as outras eu deixo nas gavetas, para sempre que puder dar uma olhadinha.

O único problema (e esse é foda) é que você não escolhe que lembranças associar à determinada coisa. De repente tem um efeite da sua namorada ali na mesa, mas daí vocês terminam aos tapas e você fica chateado. Aí, claro, aquele enfeite não vai te lembrar de coisas boas, mesmo que na ocasião tivesse sido um ótimo momento. Ou aquele livro que você ganhou do seu amigo, mas o filho da mãe foi lá e, sei lá, pegou a mina que você era apaixonado desde a 5º série. Você nunca mais vai ler o livro, mesmo que seu amigo o tivesse dado de coração.

Quando algo drástico assim acontece, e más recordações ficam impregnadas em um objeto em particular, você não quer mais ele ali. Alguns resolvem juntar tudo num saco e botar pro lixeiro levar, outros levam para algum terreno baldio e ateam fogo. Tem ainda os que jogam tudo pela janela enquanto gritam desesperada e histéricamente o nome da pessoa. Mas esta última reação é mais comum em mulheres louc... digo, veementes. Sem ofensas.

Eu, particularmente, prefiro guardar. Talvez em uma caixa, e colocar no alto de algum armário que eu não abra com frequência. É uma forma de preservar o que há de bom naqueles objetos. E ao mesmo tempo de me preservar de vê-los expostos da minha mesa de cabeceira, onde foram teimosamente impregnados com as lembranças ruins.

No final das contas fazer uma faxina na mesa de cabeceira é um símbolo de renovação. Deixar o passado para trás, seguir em frente. Afinal, aquele espaço da mesa poderá então ser ocupado novamente.

É assim que funciona...

E você? O que tem na mesa de cabeceira?
=D

 
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