Então... é natal!



Ah... o natal! Muita comilança, família reunida, incremento do comércio local e aquele adorável sentimento de solidariedade, compaixão, culpa e ansiedade por redenção. É a síndrome do natal, brôu!

O cara passa o ano inteiro dizendo “Não tem nada, não” quando abordado no semáforo, ou quando o mendigo conta a trágica e decorada história da sua mulher doente e dos dezessete filhos famintos e pede por comida, dinheiro, ou os dois. Mas no natal tudo é diferente! Sim! O espírito natalino contagia e subitamente as pessoas ficam solidárias, fazem doações, são gentis umas com as outras e perdoam a quem nos tem ofendido... como se esse período de bondade resignasse toda a sacanagem que aprontaram durante o ano, da moedinha que regularam pro mendigo e da murrinhagem com o pão velho que fizeram torrada ao invés de dar pro cara dos dezessete filhos.

Basicamente... é um período de solidariedade e sentimentos bacanas para compensar um ano inteiro de pecado?

Eu não estou querendo ditar comportamento de ninguém. Se você acha que não é legal dar moedas no semáforo por que incentiva a esmola, ou prefere fazer torrada com o pão velho, tudo bem. Cada um tem a sua opinião a respeito de como deve (ou se deve) ser solidário. Agora o que eu me questiono (e por vezes isso me irrita) é o porquê desse excesso de bondade justamente no natal? Se você curte ações de caridade, por que não faz o ano inteiro?

Tem umas ONGs que fazem um mutirão para arrecadar brinquedos e doar para as crianças dos bairros pobres no natal. Bacana. O moleque tá anêmico, sem comer direito, cheio de verme, mas agora tem o bonequinho do Ben 10! Por que esse mesmo pessoal não se reúne para distribuir presentes nos aniversários das crianças? Ou quem sabe uns livros, material escolar... Quem sabe uns alimentos, remédios. Ou ainda, ao invés de coisas materiais, que tal prestar uns serviços? O maluco ali que é dentista vai ver como que tá a boca da molecada, o outro é médico dá uma olhada nos idosos, a professora dá um reforço escolar ali, e por aí vai... Para mim isso é ação solidária, não distribuir carrinho e boneca na época de natal para aplacar seu sentimento de culpa.

Engraçado é que estamos sempre em débito né? Há um sentimento de culpa constante nos rodeando, como se estivéssemos devendo, especialmente nessa época. Há uma cobrança em ser solidário. Imagine alguém negando um prato de comida à um pobre que bate à porta da casa na noite de natal. Uma cena forte né? Só por que o cara negou o ano inteiro, agora se ele der no natal vai se redimir. Mas redimir do quê? Como se a culpa dos desafortunados do mundo fosse sua, ou minha, ou dele. E pior ainda: como se essa culpa fosse se dissipar com boas ações praticadas nesta época. Mas só as desta época, do resto do ano não conta.

Como disse, não vou ditar comportamento de ninguém. Só que é bom sermos coerentes em nossas ações. Fazer o bem não deve ser algo pontual, mas contínuo. Quem se dispõe a dar uns trocos no semáforo, que o faça. Quem se dispõe a dar um prato de comida, legal também. Quem quer fazer parte de uma ONG e mudar o mundo, bacana, tiro o chapéu! Mas isso não deve ser em uma determinada época, para resignar seus pecados ou esperando uma retribuição divina.

Enfim, acho que independente da crença de cada um, não se pode negar a existência de Jesus, seja ele filho de Deus, um profeta, filósofo ou um maluco beleza com idéias bacanas. O importante é não esquecer o que ele disse, em uma época em que se cortavam mãos de ladrões e apedrejavam mulheres:
“Vamos ser legais uns com os outros, pra variar.”

Fazer o bem não faz mal. Sejamos coerentes...

O peculiar caso de amor de Juca

O Juca era um dos caras mais sossegados que eu conheci. Gente boa toda vida, se dava bem com todo mundo. Não era assim um galã, pegador nem nada – mesmo por que era mais tranquilão, menos adepto da “vida loca” – mas bem que havia algumas meninas no pé dele. Sempre saía com umas gurias e vez ou outra aparecia de namorada nova. Mas dali a pouco sumia com a menina.

- Ah não sei cara... A guria tem uma cabecinha pequena, sabe? Não agüento essas coisas... – reclamava o Juca.

O problema dele, o que não era exatamente um problema, é que ele era exigente com mulher. A guria podia ser uma princesa, corpão e tudo mais... mas se não tivesse umas idéias massa, soubesse conversar, tivesse alguma postura crítica, o Juca não agüentava! Ah, mas ele terminava mesmo! Aposto que ele foi daqueles nerds gente-boa no colégio. Mas ele também sempre teve rolo com umas meninas meio bobinhas. Um dia eu dei a dica pra ele:

- Juca, rapaz! Você precisa de uma menina mais velha!

Foi aí que ele começou a ficar mais esperto. Aí não teve pra ninguém. A mecânica era simples: meninas mais velhas queriam caras inteligentes. O Juca, cabeça feita que era, chega com sua conversa politizada e pronto! Não tinha pra ninguém mesmo. Mas a fase garanhão durou pouco.

Eu disse. O Juca é um cara sossegado, não gosta muito de bagunça. Logo achou uma menina que era a cara dele! Ele a conheceu numa festa da faculdade, e ficou a noite inteira conversando com ela. A Ju era top demais! Nossa veterana mais gata, o sonho de consumo de qualquer calouro bobo. E olha que muita gente já alugou aquela guria! Os caras mais galãs, os mais playboys, os mais endinheirados... e todo mundo só levando toco! Não é que o Juca, com toda sua magreza e desengonçadez, chegou lá e trocou a maior idéia com a guria?
Acabou que os dois ficaram, se curtiram tanto que saiu namoro dali! Ju e Juca, o casal mais bacana da faculdade!

Aqueles dois eram um grude. No bom sentido, claro. Saíam juntos, estavam sempre nas festinhas da turma, bagunçavam e se divertiam numa boa! Eu nunca vi aqueles dois se desentenderem. Aliás, uma vez só, quando ele disse que não gostava dos filmes do Almodóvar e ela ficou fula da vida! Bom, mas eles e seus gostos cults que se entendam.

O Seu César e a Dona Amélia, pais do Juca, adoravam a menina! Acho que ela tinha um lance de carência afetiva nessa parte, saca? Ela é do interior de São Paulo e morava só com a mãe aqui. Diz ela que seus pais se separaram muito cedo, nem chegaram a casar mesmo, e ela nunca conheceu o pai. E lá na cidade dela era sempre ela e a mãe dela. Aí aconteceu que a Ju passou no vestibular aqui e veio morar sozinha em uma república. Acho que ela acabou suprindo essa falta dos pais com a família do Juca. Claro que isso não era problema nenhum, afinal os pais dele adoravam a guria e ela amava os sogros!

Sei que o namoro foi ficando sério e tal... E a Ju queria por que queria que a mãe viesse passar um feriado para conhecer os pais do Juca. O cara ficou meio griladão, lógico. Pô, apresentar as famílias é um grande passo, né! Mas depois passou o grilo, afinal eles estavam sério, e ele gostava dela, e ela dele... enfim!

- Manda sua véia vir que eu vô dar o alô pros meus véio!

No próximo feriado que teve a mãe da Ju veio, segundo ela, toda faceira conhecer o namorado da filha e os pais dele.

A Dona Amélia, super empolgada que era, preparou um baita almoço para receber a Eulália, mãe da Ju. O Seu César ficou mais ressabiado, afinal o filho dele tava muito novo para namorar tão sério e blábláblá. Aquele papo de pai ressabiado com namoro do filho com menina mais velha. Mas acabou aceitando e curtindo a ocasião.
No grande dia todos se surpreenderam com a “Dona” Eulália: Uma bela mulher recém-chegada aos seus quarenta anos. Cabelos com luzes, óculos escuros, roupas da moda e um bronzeado nos trinques. Expansiva que só ela, Eulália chegou abraçando todo mundo, falando alto e conversando numa boa. A Dona Amélia adorou o jeito enérgico e espontâneo da Eulália, e foi super receptiva. Só o Seu César que continuava ressabiado no canto dele.

O almoço correu tudo muito bem! A Dona Amélia empolgadíssima, a Eulália adorando os sogros da filha, a Ju e o Juca faceiros que só! E o Seu César ressabiado.

- César, você não é o César Fonseca, do colégio Santa Gertrudes de São Paulo? – indagou Eulália subitamente.
O Seu César pulou na cadeira, engasgando com a comida e gaguejando.
- Ué! Vocês se conhecem? – perguntou Dona Amélia.
- É você mesmo Césinho! Há quanto tempo! Quem diria você por essas bandas!
- Er... É... Bem que eu tava te reconhecendo de algum lugar... hehehe – Seu César parecia mais sem graça que televisão no domingo. – Acho que foi... no científico que estudamos juntos não foi?
- É! Acho que sim! Ah... bons tempos não é mesmo?

Bom, isso foi um episódio pontual, porém de suma importância. Daqui pra frente a conversa tomou o rumo do saudosismo. “Ah como era bom no nosso tempo!”, “Ah, antigamente isso... antigamente aquilo...”.

Almoço. Sobremesa. Cafezinho. Preguiça.

- Gente, acho que vou pro apê da Ju dar uma descansada e curtir minha filhota um pouco! – despediu-se a contente e sempre sorridente Eulália.

O Juca andava todo alegre pela casa, afinal apresentar as famílias não havia sido tão terrível assim. O foda foi à noite.
Lá estava o feliz e contente Juca vendo tevê no quarto, esticadão na cama. Ali veio o ressabiado e encolhido Seu César.

- Filhão, precisamos conversar... – disse ele entrando e fechando a porta.
O Juca já ficou de orelha em pé. Conhecia bem seu pai. Era sinal de bronca!

Seu César sentou na beirada da cama, ao lado do filho. Pousou a mão no joelho do menino e disse olhando nos olhos dele:

- Filho... Eu vou ser direto. – nisso os pais do Juca eram muito bons. Ser direto era com eles mesmos. Uma vez, quando era criança, o Juca tinha um cachorrinho que fugiu pra rua e um carro pegou ele enquanto o menino estava na escola. Quando o Juquinha chegou deu um beijo em cada um como sempre:
- Oi pai. Oi mãe. Tudo bom?
- Tudo bem sim filhão! Trabalhei o dia todo, seu cachorro morreu, e a tarde veio o técnico da tevê a cabo arrumar. Acredita que o canal de esportes não tá com o sinal bom?
- Meu cachorro morreu?! Como assim?!!
- Um carro passou em cima. Foda né, filho?

Bom, voltando ao que o pai do Juca tava dizendo para ele:

- Filho... Eu vou ser direto. Você tem que terminar seu namoro com a Juliana.
- Terminar meu namoro?! Como assim?
- Isso, terminar o namoro. Ela é sua irmã.

Seguiu-se um silêncio mórbido enquanto o Juca permanecia de boca aberta olhando para o além.

- Foda né, filho? – Seu César quebrou o gelo.
- Porra pai! – retornou subitamente de seu catatonismo momentâneo - Como assim minha irmã?
- Ah... Lembra que a Eulália disse que a gente estudou juntos no colégio?
- Hum...
- Pois é. A gente namorava.
- Hum...
- Daí sabe como é né... Acabou que escapuliu...
- Escapuliu?
- É. Que isso não sirva de exemplo, menino! Hoje tem camisinha, anticoncepcional, pílula do dia seguinte...
- Pai!!
- Ah, filho! Acontece! Foi antes de casar com sua mãe, claro! A Eulália era de família rica, eu era um pé rapado. Foi o maior barraco, ainda mais que era cidade pequena. Aí eu me mudei pra cá por que os pais dela não aceitaram nosso casamento. Mesmo por que eu não tinha onde cair morto. Por um tempo a gente se falou por cartas e ela até me mandou umas fotos da nossa filhinha. Ela me disse que ia se chamar Juliana. Eu acabei conhecendo sua mãe aqui e nunca mais falei com a Eulália...
- Mas pai... eu amo a Ju!
- Ah, Juca! Você não quer ser tio dos seus filhos, quer?

Claro que o pobre Juca não queria. Eca. O cara passou mal, vomitou, teve dor de cabeça, febre... Afinal, descobrir que estava amando, beijando e fazendo sexo com sua irmã deve ser de matar né? O Juca não sabia como contar para ninguém! E se fosse depender da sutileza mastodôntica do seu pai, tava lascado!

O guri passou uma semana mal, matando aula, sem falar direito com a Ju. Até que um dia a Dona Amélia, com a sensibilidade feminina necessária para perceber que o filho passava o dia todo trancado no quarto ouvindo Renato Russo, resolveu ir conversar.
Chegou ao quarto e sentou-se ao lado dele na cama. Colocou as mãos no joelho do filho e, olhando nos olhos, perguntou:

- O que aconteceu, filho?
- A Ju é minha irmã. – como se vê, ser direto é de família.

Passado o baque inicial da mãe, Juca contou o que seu pai tinha explicado a ele. Após ouvir tudo, Dona Amélia, sempre compreensiva, exibiu um largo sorriso materno aconchegante e ofereceu um abraço para o filho choroso. Abraçou-o bem forte e deixou o menino chorar um pouco em seus ombros. Em silêncio deitou-o em seu colo e afagou seus cabelos.

- Calma meu filho, calma... Se o amor de vocês for sincero e verdadeiro, não há problema em vocês continuarem juntos. E podem até casar, ter filhos, constituir uma família normal e feliz.
- Como assim, mãe?! Ela é minha irmã!
- Calma meu filho... – Dona Amélia afagou mais uma vez os cabelos do filho, virando-se para ele e olhando-o novamente nos olhos.
- Ela não é sua irmã.

Juca pensou ter visto nos lábios da mãe uma minúscula parte do que poderia ser um sorriso recheado de sadismo, quando então ela completou:

- Você não é filho do seu pai...

De fato, esse lance de ser direto é de família.
Foda, né?

 
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